Lei Maria da Penha para homens: proposta desinforma sobre lacunas jurídicas de proteção

há 1 semana 13
Anuncio Só MP3 Top

O PL 4954/2025 foi proposto pela deputada federal Júlia Zanatta (PL-SC) em 3 de outubro. Na justificativa, a parlamentar catarinense alega que o projeto pretende “corrigir uma lacuna de proteção no ordenamento jurídico brasileiro”. Argumenta ainda que homens podem ser vítimas e que, em muitos casos, ficam “sem amparo legal específico para medidas protetivas de urgência”. Nas redes sociais, Zanatta afirmou que “foi eleita por homens e mulheres”, que não não fará “mais para um ou para outro” e que é contra “segmentar a sociedade”.

“Existe o Código Penal, que prevê o enfrentamento de outras formas de violência. Também existem políticas públicas de segurança que olham para essa questão. Então os homens podem recorrer a outros mecanismos jurídicos que não o da Lei Maria da Penha.”

– Letícia Ueda Vella, advogada  

Existem instrumentos legais capazes de proteger qualquer pessoa, incluindo medidas protetivas urgentes. O Código Penal e o Código de Processo Penal, por exemplo, contêm dispositivos de tutela cautelar. É o caso do artigo 319 do Código de Processo Penal, que prevê medidas protetivas diversas da prisão, afastamento do lar, proibição de contato e fiança, entre outros. 

O Juizado Especial Criminal (Lei 9.099/95) também pode conceder medidas protetivas urgentes e tutelas de urgência em casos de conflito familiar, independentemente de gênero. “Ou seja: não há vazio legal, há apenas má compreensão ou má-fé política. O que falta é vontade de aplicar corretamente o que já existe, não criar uma lei que destrói a finalidade de outra”, avalia a advogada criminalista e familiarista, Tatiana Inácio Porto Bucci. 

Vale pontuar que, embora o ordenamento jurídico brasileiro tenha instrumentos para proteger qualquer pessoa, independentemente de gênero, existia uma lacuna para corrigir a desigualdade histórica contra mulheres, que estatisticamente sofrem mais violência doméstica: só entre janeiro e agosto deste ano, a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 recebeu 72,5 mil denúncias de violência contra mulheres praticadas por pessoas do sexo masculino. O número de denúncias de violência perpetrada por mulheres contra homens, no mesmo período, foi de apenas 31. Por isso, a Lei Maria da Penha é considerada também uma política pública de gênero, não apenas uma norma penal.  

Lupa entrou em contato com a assessoria de imprensa da deputada Júlia Zanatta, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem. A matéria será atualizada em caso de resposta.  

PL pode abrir precedente de violação dos direitos das mulheres

Ao prever a ampliação da Lei Maria da Penha para homens, que foi criada especificamente para combater violência de gênero contra as mulheres, há risco de descaracterização e desvirtuamento da finalidade protetiva da norma. Segundo especialistas em direito e quem trabalha com acolhimento a vítimas de violência doméstica, o PL 4954/2025 pode gerar consequências graves, entre elas a perda do reconhecimento da vulnerabilidade específica da mulher. 

“A Constituição Federal garante igualdade material, não apenas formal. Isso significa tratar desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades. Aplicar a Maria da Penha a homens seria ignorar essa desigualdade estrutural, fingindo que a violência de gênero atinge ambos os lados da mesma forma o que é falso sociologicamente e criminologicamente.”

– Tatiana Inácio Porto Bucci, advogada criminalista e familiarista 

A Lei Maria da Penha foi sancionada em 2006 (Lei 11.340), após anos de luta de movimentos de mulheres e dos direitos humanos para combater a violência doméstica. Leva o nome da biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que foi vítima de violência doméstica e duas tentativas de feminicídio pelo marido. “Essa lei reconhece que a gente não tem mecanismos efetivos para proteger mulheres em situação de violência, entendendo que a violência de gênero parte do pressuposto de que há uma desigualdade de gênero colocada dentro da sociedade, ou seja, que submete mulheres a uma violência específica cometida em geral dentro do ambiente doméstico familiar”, analisa a advogada Letícia Ueda Vella, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. 

Ainda na análise de Vella, a violência praticada contra um homem já é pautada pelo que está previsto no Código Penal e por políticas de segurança pública. “A gente pode pensar em formas de prevenção e de combater a violência contra homens, mas não desvirtuando uma lei de proteção contra violência baseada no gênero, ou seja, na desigualdade entre homens e mulheres”, pontua. 

Na mesma linha, a criminalista Tatiana Inácio Porto Bucci enfatiza que o foco da Lei Maria da Penha é o gênero, não o simples fato biológico de ser mulher ou homem. “Estender a lei para homens descaracteriza sua natureza jurídica, deturpa sua finalidade e apaga o recorte de gênero que motivou sua criação. Seria o mesmo que querer aplicar o Estatuto da Criança e do Adolescente a adultos sob o argumento de que ‘adultos também sofrem violência’. É um absurdo técnico e político”, avalia. 

PL usa TCC, artigo e texto em revista da Fapesp para justificar alteração na Lei Maria da Penha

O TCC de 2017, por exemplo, contextualiza as diferentes formas de violência e apenas cita, sem uma análise metodológica, números de violação de direitos sofridas por homens em âmbito doméstico notificados pelos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) do estado da Paraíba nos anos 2013 (quando o serviço foi implementado), 2014 e 2016. Além disso, o TCC confronta o movimento feminista e reproduz a ideia “do lugar da mulher na família”.

O artigo de sete páginas da Research, Society and Development também não apresenta dados. Faz apenas uma revisão bibliográfica qualitativa – que analisa e interpreta criticamente estudos e teorias já publicadas – e discute a violência contra homens em relações íntimas, especialmente a violência psicológica. Conclui que a temática é importante e sugere mais estudos em razão justamente da dificuldade em encontrar artigos e discussões sobre o assunto, admitindo que o número de violência contra as mulheres é maior.

Por fim, o texto da revista da Fapesp é uma matéria sobre uma pesquisa de doutorado de 2022: uma revisão de estudos sobre violência sexual contra meninos e homens realizados no Brasil de 2015 a 2021. O autor dessa pesquisa revisou 53 estudos e identificou que, entre os homens, os grupos mais afetados pela violência sexual são os homens que fazem sexo com homens e aqueles com disfunções sexuais. Também identificou que meninos são vítimas de agressões sexuais mais cedo do que as meninas.

Nenhum desses estudos conclui que existe uma lacuna jurídica para proteção de homens, apenas sugerem que eles também podem ser alvos de violência e que, muitas vezes, têm mais vergonha para denunciar.

Para a professora do departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Andreia Isabel Giacomozzi, que atua em grupos focados em atendimento a mulheres vítimas de violência, é válido refletir que não é que não existam violências contra os homens. “Mas o que a gente precisa olhar é que, socialmente, o que a gente tem estatisticamente, é que as mulheres são mortas pelos homens, pelas mãos dos companheiros ou ex-companheiros”, diz. 

Com recorde de feminicídios em 2024 no Brasil, comparação não é adequada

A edição mais recente do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em julho de 2025 com dados de 2024, alertou que, no ano passado, a violência contra a mulher está crescendo em todas as modalidades. Em 2024, houve recorde de casos de feminicídios — foram 1.492 casos notificados. A maior parte dos crimes ocorreu na casa da vítima, geralmente cometida por companheiros ou ex-companheiros. 

Estupros e estupros de vulneráveis também alcançaram o maior número da história: 87.545 casos registrados, 65,7% praticados dentro de casa. Também houve aumento significativo nas tentativas de feminicídio, com 3.870 registros, um aumento de 19% em relação ao ano anterior. A violência psicológica aumentou 6,3%, com 51.866 casos; e stalking aumentou 18,2%, com 95.026 registros.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública não tem estatísticas sobre homens vítimas de violência doméstica, tampouco o Atlas da Violência 2025, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Esse último, aliás, destacou que, além das mulheres,  crianças e adolescentes do sexo feminino são as que mais sofrem com a violência doméstica e intrafamiliar no Brasil. Em 2023, o relatório mostrou que 1 em cada 4 tinham entre 0 e 9 anos ou entre 10 e 14 anos, totalizando 24,4% das vítimas.

“Os dados demonstram que a violência a qual estão expostos os homens é muito diferente da violência a qual estão expostas as mulheres. Contra homens não tem essa prevalência doméstica. É geralmente uma violência praticada na rua e isso também está ligado à questão de como é que os homens são socializados — o que gera, por sua vez, uma segurança maior no ambiente público e não no privado”, analisa a advogada Letícia Ueda Vella. 

Isso, obviamente, não significa que homens não podem ser vítimas de violência doméstica e familiar. “Significa que eles não precisam de uma proteção específica em relação a isso, mas podem fazer uso do ordenamento jurídico geral, que é composto pelo Código Penal, que é composto por legislações decorrentes e principalmente também pela política pública de segurança pública”, explica.

Para a professora do departamento de Serviço Social da UFSC, Maria Regina de Avila, em nenhum momento da história a violência entre homens e mulheres é comparável. “Menos ainda atualmente, quando há estudos e pesquisas que, ao contrário, mostram o aumento da violência contra as mulheres em especial do feminicídio. Durante séculos as mulheres foram silenciadas e domesticadas para aceitação da violência como parte de sua própria existência. Assim, nem em números e menos ainda em conteúdo tal propositura faz sentido ético-humano e político”, afirma.

Na mesma linha, a professora  Andreia Isabel Giacomozzi, da UFSC, também pondera que comparar a violência contra homens e contra mulheres não faz sentido. 

“A  maior parte dos casos de feminicídio ocorre na frente dos filhos. Estatisticamente não tem comparação. O que a gente tem, na verdade, é uma grande tragédia social que envolve os filhos verem o pai matar a própria mãe, ficarem órfãos e terem o pai na cadeia. Isso traz uma aprendizagem social da violência que vai ser levada para as próximas gerações.”

– Andreia Isabel Giacomozzi, professora do departamento de Psicologia da da UFSC

Para a criminalista Tatiana, colocar a violência contra homens e contra mulheres no mesmo lugar é uma “comparação enganosa e desonesta”, uma vez que ignora as estruturas históricas de poder. “Criminologicamente, as causas, contextos e consequências são totalmente diferentes. A mulher vítima enfrenta silenciamento, medo, dependência financeira, ameaça à vida e à integridade física e sexual. O homem, quando agredido, não vive sob o mesmo sistema de opressão estrutural. Portanto, não é possível, nem ético, colocar ambos os fenômenos sob o mesmo guarda-chuva legal”, conclui.

O PL foi apresentado no dia 3 de outubro na Câmara dos Deputados e ainda não começou a tramitar. Deve seguir o rito padrão, que é a distribuição pelo presidente da casa para que comissões temáticas de assuntos correlatos possam analisar o mérito. Nesse processo, o PL pode receber emendas (sugestões) de outros deputados. Se aprovado nessa fase, depois será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Casos específicos vão a votação no plenário. Caso aprovado, é então encaminhado para votação no Senado.

Fonte: Lupa Uol 

Ler artigo completo